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Tecnologia até cair. Testes, tendências e a melhor forma de pôr os gadgets ao nosso serviço.
“O design consiste em moldar a cultura”
São irmãos, têm ganho prémios de design internacionais de design industrial e foram desafiados pela Samsung para desenhar um televisor, a que deram o nome de Serif TV. Os irmãos Bouroullec nasceram na Bretanha mas vivem e trabalham em Paris. A Must esteve à conversa com o irmão mais novo, Erwin (40 anos) sobre os desafios de ‘reinventar’ o televisor.
João Tomé, para a revista Must (do jornal de Negócios), setembro 2016
Porque é que o convite da Samsung para desenhar uma televisão foi tentador?
Houve muitos factores que levaram ao nosso ‘sim’. Diria que o principal foi o facto da televisão estar presente de forma massiva no nosso mundo e querermos experimentar um campo diferente do nosso habitual. É um produto tecnológico mas no fim de contas uma televisão não tem de ser assim tão diferente de uma cadeira.
Qual foi a abordagem inicial? O facto de envolver tecnologia mudou o processo?
Claro que há um lado de tecnologia que temos de aprender mas a nossa filosofia inicial foi a mesma de sempre. É importante, quando temos um novo contexto de trabalho, tentar não mudar muito os processos. A televisão acaba por ser um objeto simples a nível de design, não tem a complexidade de um carro ou de um smartphone, por isso é fácil começar logo nos parâmetros iniciais.
Houve muitas ideias ou tiveram logo ideia clara em pegar no conceito do estilo de letra Serif?
Nós tivemos muitas abordagens diferentes que fomos discutindo e uma delas foi de usar como base o estilo de letra Serif. Queríamos aplicar uma linguagem que fizesse a televisão pousar de forma fácil em qualquer lugar e relacionar-se com naturalidade com o ambiente de uma sala, de qualquer sala. Achámos que havia a necessidade de uma voz diferente no mundo da televisão, que tem um lado de design muito orientado para a tecnologia, ecrãs ultra finos ou curvos, muito disruptivo. Queríamos algo que tivesse menos a ver com a técnica mas assentasse de forma natural e contribuísse para a qualidade do espaço existente.
Visto de lado o design da Serif faz lembrar a letra I...
Era esse o objetivo. Pensámos nesse I a propósito do I em Serif mas não foi uma intenção inicial, acabou por ser mais uma consequência do trabalho.
Foi um dos projetos mais desafiantes?
De certa forma sim. A Serif TV requereu muito trabalho com os engenheiros coreanos, tivemos de aprender muitos pormenores e de tentar convencer muitas pessoas diferentes para chegar a bom porto mas ao mesmo tempo deu-nos muito prazer porque estávamos a encontrar soluções. Muitas vezes comparo-me a um maestro que controla a orquestra. A indústria para mim é a orquestra e eu gosto de fazer a orquestra tocar o que eu quero.
Trabalharam também o comando de televisão? De que forma?
Desenhámos tudo, incluindo a parte de trás da televisão e a forma de saída dos fios. O comando em particular foi um desafio também pela parte técnica. Tentámos criar uma interface central mais aglomerada. Desenhar o televisor acabou por se assemelhar num aspeto ao design de um carro, onde não só se desenha o exterior mas também os bancos no interior... Ou seja também desenhámos o interface do utilizador onde há um inclusive um modo que torna o ecrã numa cortina.
Tiveram um bom feedback pelo design da Serif?
Sim, tem sido muito positivo. As pessoas têm gostado e a televisão acabou por abranger um público mais abrangente do que costumamos ter. A televisão é um produto polarizante para o público, encontramos pessoas que adoram e outros que odeiam (risos). Mas em geral tem sido bem acolhido e não faltam fotos nas redes sociais, onde vemos a Serif em casas muito diferentes e em contextos distintos e a maior parte das vezes assenta mesmo bem. E ver essa satisfação é um óptimo presente para nós, ficamos felizes por ver que a ideia resultou.
Esta ideia de tecnologia inclusiva e simples numa sala pode ser um bom ponto de partida para o futuro?
Bem, acho que é mais uma matéria de escolha pessoal. Fiquei orgulhoso pela Serif mas ao mesmo tempo não digo que tudo devia ser assim. Acredito nos meus métodos de design e na minha filosofia mas não ao ponto de fazer uma religião deles. Fico contente por haver coisas diferentes do que fizemos. No fim do dia o bom de haver produtos de designs diferentes é dar liberdade às pessoas de escolherem o que mais as representa. Gosto da minha televisão mas acho normal que outros gostem de algo mais tecnológico.
A nível de carreira começou muito cedo, com o seu irmão a dar os primeiros passos no design. O que o inspirou para entrar no design?
Quando era novo era facilmente influenciável pela música Indie ou música pop. Fascinava-me que muitos artistas fizessem tudo aquilo sozinhos, de uma forma independente e até sobre temas pessoais e ao mesmo estivessem a comunicar algo extremamente popular, leve e fácil de chegar aos outros. De uma forma ou outra isso levou-me para o design pelos meus estudos na escola e nas disciplinas que fui tendo. Criar algo que pode ser reproduzido, apreciado e influenciar os outros apaixonou-me no design. Ter algo por perto que apreciamos ter junto a nós, mesmo que não pensemos muito nisso. Isso é fascinante.
Quando é que juntou ao seu irmão e começaram a desenhar juntos?
A nível profissional há quase 20 anos. Éramos jovens na altura. O Ronan é cinco anos mais velho do que eu e já tinha um estúdio quando saí da faculdade e juntei-me a ele, tinha 21 ou 22.
O que vos inspirou mais nos primeiros tempos?
De certa forma éramos inspirados pelo trabalho, pelos projetos que íamos tendo em mãos. Claro que temos muitas influencias exteriores mas nada determinante como ferramenta de trabalho. Uma das chaves para design em estúdio é estar em permanente diálogo uns com os outros. Temos outros colaboradores mais jovens que nos ajudam a mantermo-nos frescos e no estúdio estamos sempre a debater. Design é diálogo, é colaboração, por isso precisamos de nos embrenhar nas ideias e pô-las em causa ao mesmo tempo.
Tem ideias constantemente, onde quer que esteja, de madrugada por exemplo?
Sim, confesso que sou obcecado pelo meu trabalho (risos), sem dúvida. O meu processo pessoal é muito mental, não preciso de estar a escrever notas que coisas que me lembro de madrugada, porque se vale a pena vou-me lembrar da ideia de manhã.
O vosso trabalho já chegou a ser comparado com poesia. De que forma tentam inspirar os outros?
O verdadeiro desafio do design é uma abordagem cultural. O design tem de dizer algo à parte humana dentro de nós. De certa forma o design consiste em moldar a cultura, dar uma forma ao que nos rodeia. Se entrarmos num cozinha e todo o ambiente for agradável e estiver tudo no sítio certo, vamos ter mais vontade em cozinhar e vamos cozinhar melhor. O design é olhar para formas mais inteligentes, gentis, ágeis e fornecê-las aos humanos. A poesia é uma forma de dizer isto, que por trás da funcionalidade há uma outra funcionalidade do cérebro, da beleza, da agilidade humana.
Que projetos têm na calha?
Temos muitas coisas a decorrer. O principal é um projeto de objetos com um papel urbanístico dentro de cidades. Fizemos uma exposição em Viena o ano passado com soluções para a cidade, como quiosques, onde tivemos muitas propostas para criar espaços públicos e alguns vão avançar para integrar algumas cidades. Mobília não é só para uma pessoa, é para os visitantes, amigos, por isso é sempre algo que possa servir várias pessoas e provoque um ambiente positivo para quem a use. O design urbanístico é uma forma natural de expandir este mundo, claro que o facto de ser no exterior e pertencer às cidades é algo com que nos relacionamos.
* A Serif TV chega a Portugal a 16 de novembro e está disponível em três tamanhos de ecrã, de 24 polegadas a 40, e em três cores. Os preços devem oscilar entre os 690 e os 1600 euros.